Por que, mesmo vivendo em sociedades cada vez mais organizadas, seguras e tecnológicas, seguimos angustiados, frustrados e infelizes?
Essa é a pergunta que orienta uma das obras mais importantes e pessimistas de Sigmund Freud: “O Mal-Estar na Civilização” (Das Unbehagen in der Kultur, 1930).
Neste ensaio, Freud propõe uma tese ousada e provocadora: a cultura, que nos protege e organiza a vida em sociedade, também é a fonte inevitável do nosso sofrimento.
Neste artigo, você vai entender:
- O que Freud chama de “mal-estar”;
- Como ele relaciona a cultura, a repressão e o sofrimento psíquico;
- E por que essa reflexão é mais atual do que nunca.
O que é “cultura” para Freud?
Para Freud, cultura (ou civilização) é todo o conjunto de instituições, normas, técnicas, saberes, valores e produções simbólicas que regulam a vida em sociedade.
Ela serve para:
- Proteger os seres humanos dos perigos da natureza;
- Organizar a convivência e evitar que a agressividade destrua o grupo;
- Promover o progresso técnico, artístico e científico.
Ou seja: a cultura é um aparato de proteção e organização, fundamental para que não vivamos em um estado de guerra permanente.
O preço da civilização: repressão do desejo
Mas esse avanço tem um custo alto: para viver em sociedade, cada indivíduo precisa reprimir parte de seus impulsos instintivos.
- Desejos sexuais devem ser contidos e canalizados;
- Impulsos agressivos devem ser refreados;
- A busca pelo prazer imediato deve ser renunciada.
Essa renúncia pulsional é necessária para garantir a convivência social. Mas também é a fonte do mal-estar.
Segundo Freud:
“O que chamamos felicidade advém, em larga medida, da satisfação dos nossos instintos.”
Logo, ao reprimir tais instintos para manter a civilização, criamos um mal-estar estrutural: um conflito permanente entre os desejos individuais e as exigências coletivas.
O mal-estar: uma condição inevitável
Freud não vê esse mal-estar como um defeito da cultura, mas como uma condição inevitável.
As fontes do sofrimento humano são três, segundo ele:
- A superioridade da natureza → doenças, envelhecimento, catástrofes.
- A fragilidade do corpo → sujeição à dor e à morte.
- A insuficiência das relações sociais → conflitos, frustrações, rivalidades.
A cultura tenta minimizar esses sofrimentos, mas ao fazer isso, também restringe nossa liberdade, impondo limites que geram frustração e angústia.
A pulsão de morte: o inimigo interno
Em O Mal-Estar na Civilização, Freud aprofunda sua teoria das pulsões, introduzindo a ideia de uma pulsão de morte (Thanatos), que se opõe à pulsão de vida (Eros).
A cultura procura organizar os seres humanos com base em Eros — a tendência à união, à cooperação e à criação. Mas ela precisa, ao mesmo tempo, reprimir e redirecionar a pulsão destrutiva, agressiva, voltada à dominação e à morte.
Porém, essa repressão nunca é completa: a agressividade persiste, deslocando-se para dentro — voltando-se contra o próprio indivíduo, gerando:
- Culpa;
- Angústia;
- Sintomas neuróticos.
Assim, o mal-estar é produzido não só pela repressão social, mas também pelo conflito intrapsíquico.
O superego: a instância do mal-estar
O Superego é a parte da mente que interioriza as normas sociais e culturais. Ele funciona como um juiz interno, cobrando perfeição, punindo transgressões — reais ou imaginadas.
O Superego é, para Freud, uma das principais fontes do mal-estar: ele nos impede de satisfazer livremente nossos desejos e nos faz sofrer por desejar.
Vivemos, assim, em uma tensão constante entre:
- O que queremos fazer;
- O que podemos fazer;
- O que devemos fazer.
Existe saída para o mal-estar?
Freud é profundamente pessimista em relação a essa questão. Para ele, não existe civilização sem repressão — e, portanto, não existe vida em sociedade sem mal-estar.
As tentativas de minimizar o sofrimento — seja pela arte, pelo trabalho, pelo amor ou até pelo uso de substâncias psicoativas — são paliativos, mas não eliminam o conflito fundamental entre natureza pulsional e cultura.
Por outro lado, Freud reconhece que pensar esse mal-estar é fundamental para compreendermos nossa condição humana e para buscarmos formas menos opressivas de organização social.
O mal-estar hoje: por que essa obra é atual?
Em tempos de:
- Aceleração tecnológica;
- Pressão por produtividade;
- Redes sociais que expõem e controlam a vida íntima;
- Crises ambientais e políticas;
…o diagnóstico de Freud sobre o mal-estar estrutural da civilização parece mais atual do que nunca.
Continuamos renunciando ao prazer em nome da produtividade, internalizando normas que geram culpa e ansiedade, e vivendo em sociedades que tanto nos protegem quanto nos adoecem.
Conclusão: conviver com o mal-estar é humanizar-se
Freud não nos oferece uma saída fácil, mas nos convida a aceitar que a vida psíquica é, por natureza, tensa, ambivalente e conflituosa.
Reconhecer o mal-estar é o primeiro passo para:
- Refletir sobre nossas escolhas e modos de vida;
- Buscar formas mais éticas e cuidadosas de organização social;
- Lidar com nossas frustrações de maneira menos autodestrutiva.
Como disse Freud:
“O propósito da vida não é a felicidade plena, mas a redução do sofrimento.”
Um convite, talvez, não à resignação, mas à lucidez — e quem sabe, à construção de uma cultura mais consciente de suas próprias contradições.