O que aconteceria se nos recusássemos a acreditar que há um “sexo natural”? Se disséssemos que os corpos não nascem sexuados, mas são sexualizados por um regime político, médico e jurídico que os quer organizar em masculino e feminino?
Essa é a pergunta central do Manifesto Contrassexual, livro em que o filósofo e ativista Paul B. Preciado propõe uma insurreição contra o regime heterossexual, que ele chama de heterossexualidade compulsória ou contrato sexual moderno.
Ao invés de simplesmente reivindicar novos direitos dentro da estrutura existente (como casamento homossexual ou reconhecimento legal de identidades trans), Preciado propõe algo mais radical: desconstruir a própria base biopolítica do sistema sexo-gênero, e com isso, inventar outras formas de viver, desejar e corporificar.
O sexo como construção política
Preciado parte da ideia de que o que chamamos de “sexo” (masculino/feminino) não é uma verdade biológica objetiva, mas uma construção social e política. Os órgãos genitais, os hormônios, os cromossomos — todos esses elementos são interpretados e organizados por discursos científicos, jurídicos e culturais que produzem a ilusão de dois sexos “naturais”.
Esse processo cria o que ele chama de contrato sexual: um acordo implícito que vincula sexo biológico, identidade de gênero e papel social (ex: pênis = homem = ativo).
A contrassexualidade surge como uma ruptura com esse contrato, recusando suas premissas e abrindo espaço para outras práticas corporais, afetivas e simbólicas.
Corpos fictícios e práticas insubmissas
No coração da proposta contrassexual está a noção de que todos os corpos são fictícios — no sentido de que são moldados por normas, discursos e tecnologias. Em vez de buscar uma “verdade” do corpo, a contrassexualidade propõe ficcionalizar os corpos de modo consciente, libertando-os de sua prisão normativa.
Isso se manifesta em práticas como:
- Reapropriação dos órgãos sexuais com outros nomes e funções (ex: chamar o pênis de “clitóris contrassexual”).
- Reinvenção do prazer para além da lógica falocêntrica, penetrativa e binária.
- Desvinculação entre desejo e identidade fixa (ex: desejar algo não define “o que você é”).
- Uso de brinquedos, performances, hormônios e linguagem como formas de resistência ao regime de verdade do sexo.
A contrassexualidade não busca um novo modelo universal — ela reivindica o direito à invenção infinita do corpo e do desejo.
Contra o biopoder: política do prazer
Preciado está dialogando com autores como Michel Foucault, ao mostrar que o poder moderno não atua apenas por repressão, mas por meio de uma administração produtiva da vida, incluindo a sexualidade. O sexo é um campo estratégico do biopoder: ao normatizar o corpo, ele organiza o trabalho, a família, a reprodução, a propriedade.
A contrassexualidade, portanto, é uma micropolítica de resistência ao biopoder. Ela atua na escala do corpo e do desejo, recusando os dispositivos que organizam a sexualidade a serviço da ordem.
Essa resistência se dá não apenas por meio da identidade, mas sobretudo por meio da prática: inventar novas formas de tocar, nomear, gozar, performar — em suma, habitar o corpo como zona de experimentação política.
Conclusão: por uma insurreição erótica
A contrassexualidade não é uma nova identidade ou uma nova teoria sobre o sexo “correto”. É uma proposta de desobediência ativa aos dispositivos de sexualidade, uma afirmação da potência inventiva dos corpos.
Em um mundo onde o prazer ainda é regulado, onde os corpos ainda são vigiados, onde o gênero é policiado desde o nascimento, a contrassexualidade aparece como uma prática de liberdade — somática, erótica, teórica e existencial.
Como escreve Preciado:
“A contrassexualidade não quer reformar o contrato sexual, quer explodi-lo.”