Quem decide o que é conhecimento legítimo? Quem tem o direito de falar em nome da razão, da ciência ou da verdade? E o que foi silenciado, negado ou invisibilizado em nome desse suposto saber universal?
As Epistemologias do Sul emergem como uma resposta crítica a essas perguntas. Elas afirmam que não há apenas uma forma de conhecer o mundo — e que os saberes dos povos colonizados, racializados, silenciados ou marginalizados têm tanto valor quanto os produzidos pelas universidades ocidentais.
Este artigo é um convite a repensar o que entendemos por conhecimento — e a ouvir os saberes que resistem.
O que são Epistemologias do Sul?
O termo foi popularizado pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que propõe uma revalorização dos saberes produzidos nos contextos colonizados, especialmente na América Latina, África e Ásia.
“Do Sul” aqui não é apenas geográfico, mas metafórico e político: representa as experiências de opressão, resistência e criatividade que se desenvolveram fora dos centros de poder global. É o Sul como lugar de fala e de escuta.
As epistemologias do Sul propõem uma ecologia de saberes — um modelo em que diferentes formas de conhecimento (indígenas, quilombolas, camponesas, feministas, populares, espirituais) possam dialogar em pé de igualdade, sem serem subordinadas à ciência moderna eurocêntrica.
A monocultura do saber e a colonialidade do conhecimento
A modernidade impôs uma monocultura epistêmica: só o que é validado pelas ciências ocidentais é considerado “verdadeiro” ou “útil”. Isso excluiu outras formas de saber — oralidade, espiritualidade, práticas ancestrais, cosmologias não lineares, conhecimentos coletivos.
Como denunciam pensadores decoloniais como Aníbal Quijano e Catherine Walsh, essa exclusão faz parte do que chamamos de colonialidade do saber: uma lógica que hierarquiza conhecimentos e legitima a dominação cultural dos países do Norte global.
As epistemologias do Sul denunciam esse processo e buscam reconhecer a diversidade epistêmica da humanidade, recuperando o valor dos saberes negados.
Saberes insurgentes
Os saberes do Sul são insurgentes porque não apenas propõem alternativas — eles são, por si, práticas de resistência. Ao afirmar outras formas de viver, curar, aprender, organizar o tempo, se relacionar com a natureza e com a coletividade, esses saberes desafiam a colonialidade, o patriarcado, o capitalismo e o racismo estrutural.
Eles não querem ser integrados no sistema dominante — querem transformá-lo. Ao contrário da “inclusão” acrítica, as epistemologias do Sul propõem uma reconfiguração radical das hierarquias entre saberes.
Pluralidade como horizonte
As epistemologias do Sul não buscam substituir a ciência moderna por outras crenças. O que propõem é o diálogo sem hierarquia, o reconhecimento mútuo, a possibilidade de aprender com o outro.
Essa pluriversalidade, como diz Arturo Escobar, é a alternativa ao universalismo dominante: não há uma única verdade, mas muitas formas de construir sentido, valor e conhecimento, enraizadas nas experiências de diferentes povos.
Conclusão: escutar o Sul
Valorizar as epistemologias do Sul não é apenas um gesto acadêmico. É um posicionamento ético e político. É escolher escutar onde antes só se mandava calar. É reconhecer que não há justiça social sem justiça cognitiva.
Se queremos outro mundo possível, como dizem os movimentos populares, precisamos também outros modos de conhecer esse mundo. E para isso, o Sul tem muito a ensinar — não como alternativa exótica, mas como fonte viva de resistência, criatividade e reinvenção da vida coletiva.