Governar a Si Mesmo: A Vida como Projeto Neoliberal

O neoliberalismo não vive apenas nas planilhas de ministros da economia ou nas políticas de austeridade. Ele vive em frases como “você é o único responsável pelo seu sucesso”, “seja sua melhor versão” ou “quem quer, dá um jeito”. Ele se infiltra nos corpos, nos afetos e até nos sonhos.

Mais do que um modelo de mercado, o neoliberalismo é uma forma de governo da vida, que transforma cada indivíduo em empreendedor de si mesmo. Nesse regime, “governar a si mesmo” não é liberdade — é um modo sofisticado de controle.

Do Estado ao Eu: a mutação do poder

Em suas últimas aulas no Collège de France, Michel Foucault mostrou que o neoliberalismo não destrói o Estado — ele o redefine. O objetivo não é mais garantir direitos ou corrigir desigualdades, mas produzir sujeitos autônomos, flexíveis e responsivos às exigências do mercado.

O foco do poder, então, se desloca: o alvo agora é o sujeito. A autogestão, o autocuidado, o autodesempenho — tudo parece escolha, mas é a imposição de uma lógica que naturaliza a competição e individualiza o fracasso.

A vida como capital humano

Para o neoliberalismo, a vida é um investimento. Cada pessoa deve gerir seus recursos — tempo, saúde, beleza, emoções — como um capital. Você é marca, produto e gestor ao mesmo tempo.

É isso que a teórica política Wendy Brown chama de subjetividade neoliberal: um modo de existência em que as decisões mais íntimas (fazer terapia, escolher um parceiro, criar um filho) são lidas em termos de retorno, risco, eficiência.

O cuidado de si, que poderia ser uma prática ética ou estética, é capturado por uma lógica empresarial: ser saudável, feliz e produtivo torna-se um imperativo moral.

O fracasso como culpa

Se tudo é escolha individual, o fracasso deixa de ser uma questão social e passa a ser pessoal. Está cansado? Você não sabe organizar seu tempo. Está deprimido? Falta gratidão. Está desempregado? Falta esforço.

Essa é a violência simbólica do neoliberalismo: transformar a dor estrutural em problema de desempenho individual. A precariedade se torna sintoma de incompetência, e não consequência de um sistema excludente.

Como escreve Byung-Chul Han, vivemos sob o regime da “autoexploração voluntária”, em que o sujeito se esgota acreditando que está se libertando.

Resistir ao governo de si

Romper com esse modelo exige desnaturalizar a lógica da autogestão neoliberal. Isso não significa abdicar da autonomia, mas reconstruir o cuidado de si como prática coletiva, afetiva e solidária.

Significa recusar o modelo de “vida como projeto de sucesso” e afirmar a vida como relação, como cuidado mútuo, como tempo não produtivo, como pausa, como escuta, como falha compartilhada.

Conclusão: libertar-se do eu-empresa

O neoliberalismo nos ensinou a sermos empresas de nós mesmos. A resistência talvez esteja em deixar de ser produto, deixar de performar, deixar de render.

Governar a si mesmo, nesse sentido, deixa de ser dever e volta a ser pergunta: como queremos viver? Com quem? Com que ritmos, com que afetos, com que sonhos?

A crítica ao neoliberalismo não se faz apenas no plano econômico. Ela começa quando ousamos desacelerar, descansar, fracassar — e criar modos de vida que não caibam no currículo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *