No capitalismo contemporâneo, os objetos brilham. Eles têm nomes próprios, contam histórias, despertam afetos. Compramos não apenas coisas, mas estilos de vida, identidades, promessas. O celular não é só ferramenta — é símbolo. O carro, o tênis, o vinho, a câmera: todos falam, encantam, seduzem.
Karl Marx, no século XIX, já havia diagnosticado essa inversão: as mercadorias parecem ter vida própria, enquanto as relações entre as pessoas — entre trabalhadores e capitalistas — se ocultam. A isso, ele chamou de fetichismo da mercadoria.
Neste artigo, vamos entender como esse fenômeno não apenas persiste, mas se reinventa sob novas formas simbólicas, midiáticas e afetivas, tornando a mercadoria um verdadeiro mito da vida moderna.
O que é o fetichismo da mercadoria?
Para Marx, o fetichismo ocorre quando as relações sociais de produção (quem produz, em que condições, com qual valor) são mascaradas pela forma mercadoria. O produto aparece como um ente autônomo, natural, com preço, mas sem história.
Ou seja: o valor de troca se sobrepõe ao valor de uso, e o que vemos é apenas o brilho da coisa — não o trabalho humano que a produziu.
A mercadoria, assim, ganha aura, como se fosse mágica — enquanto os corpos que a fabricam desaparecem. Essa ilusão sustenta a lógica do consumo: os objetos parecem falar por si, e não como resultado de um sistema de exploração.
A mercadoria como narrativa
No século XX, com o avanço da indústria cultural, pensadores como Adorno e Horkheimer mostraram como a lógica do fetichismo se expande: não apenas produtos, mas também arte, entretenimento, sentimentos e até ideias viram mercadorias.
Hoje, com o marketing emocional, o branding e as redes sociais, a mercadoria é vendida como mito. Ela carrega um enredo, um ideal: sustentabilidade, liberdade, juventude, rebeldia, cuidado. O objeto é só a ponta do iceberg — o que se vende é uma narrativa pronta para ser incorporada.
O consumo como identidade
Com Jean Baudrillard, entra em cena a crítica mais radical: não consumimos coisas — consumimos signos. A camiseta de grife, o celular de última geração, o café artesanal são marcadores simbólicos de pertencimento e status. O valor está no que eles dizem sobre quem somos ou quem queremos parecer ser.
O consumo, então, torna-se uma linguagem de identidade. E a mercadoria, um mito portátil que promete felicidade, singularidade, diferenciação — mesmo que seja produzida em massa.
Fetichismo e invisibilização
Enquanto isso, a lógica do fetichismo continua: quanto mais brilhante o mito da mercadoria, mais invisíveis ficam as cadeias globais de exploração. Crianças em fábricas têxteis, mineradores em zonas de guerra, trabalhadores precarizados — tudo isso é apagado da vitrine.
As formas contemporâneas do fetichismo são mais sofisticadas, pois se apresentam como progressistas, éticas, conscientes. Mas muitas vezes, apenas revestem o mesmo sistema com novas roupagens.
Conclusão: descosturar o brilho
Pensar a mercadoria como mito é desnaturalizar o desejo que ela encena. É entender que os objetos não são neutros: eles contam uma versão do mundo, e silenciam outras.
A crítica ao fetichismo é, portanto, um gesto de desmascaramento: olhar além da superfície, escutar o que foi calado, recuperar a história do que consumimos.
Num tempo em que tudo se transforma em mercadoria — inclusive a própria vida —, resistir talvez comece por recusar o encanto fácil, e buscar outras formas de valor, de relação, de presença.