As verdades não caem do céu. Elas não nascem puras, neutras ou eternas. Elas são produzidas, historicamente situadas, ligadas a interesses, disputas, violências. Mas o que acontece quando essas verdades se naturalizam, quando passam a parecer óbvias, indiscutíveis, “científicas”?
É justamente contra essa naturalização que Michel Foucault propõe a genealogia como método filosófico: uma forma de investigar a origem das verdades para mostrar que elas não têm origem fixa, mas sim uma história de contingência e poder.
Neste artigo, exploramos como a genealogia nos ajuda a ver que verdades são construídas, mantidas e transformadas dentro de relações de força, e como essa compreensão pode abrir caminho para a crítica e a reinvenção.
O que é a genealogia?
Inspirado em Nietzsche, Foucault recusa a ideia de que podemos descobrir uma essência original ou um fundamento último para os fenômenos humanos. A genealogia não busca a origem pura, mas sim os acasos, desvios, disputas, esquecimentos e violências que constituem o que chamamos de “verdade”.
Ela é, portanto, um método crítico e histórico. Em vez de perguntar “qual é a verdade sobre isso?”, a genealogia pergunta:
“Como essa verdade se tornou verdade?”
A verdade como efeito de poder
Para Foucault, todo saber está ligado a relações de poder. Isso não significa que a verdade seja uma mentira, mas que ela é sempre produzida dentro de um regime que decide o que pode ser dito, quem pode dizer, com que autoridade e com que efeitos.
A genealogia mostra que o que hoje chamamos de “saúde”, “normalidade”, “sexualidade”, “delinquência” ou “identidade” são construções históricas que serviram a certos modos de governar corpos e condutas.
A história, então, não é um depósito neutro de fatos, mas um campo de batalhas, onde as verdades que hoje nos governam foram impostas, negociadas e, muitas vezes, naturalizadas à força.
Exemplo: a loucura, o crime, o sexo
Nos seus estudos sobre a loucura (História da Loucura), a prisão (Vigiar e Punir) e a sexualidade (História da Sexualidade), Foucault mostra como práticas de exclusão, observação, classificação e correção produzem sujeitos e saberes ao mesmo tempo.
A figura do “louco”, do “delinquente”, do “perverso” não são apenas descobertas científicas — são resultados de tecnologias de poder que organizam o que pode ser dito, feito e sentido sobre o corpo e a conduta.
Por que isso importa?
Ao mostrar que as verdades são históricas, a genealogia não cai no relativismo puro, mas abre a possibilidade da crítica e da transformação. Se o que existe foi construído, então pode ser reconstruído de outro modo.
A genealogia é uma prática de desnaturalização: ela nos convida a olhar de forma estranha para o que nos parece familiar, e a perceber como o que chamamos de “normal” é, muitas vezes, resultado de exclusões, silenciamentos e violências legitimadas como saber.
Conclusão: pensar historicamente é pensar politicamente
A genealogia do poder nos ensina que não há verdade sem história, e que todo saber é atravessado por escolhas políticas — conscientes ou não. Entender isso é o primeiro passo para romper com os discursos dominantes e abrir espaço para outros modos de existência, saber e vida coletiva.
Contra o mito da verdade eterna, a genealogia afirma:
as verdades têm passado — e esse passado importa.