Confessar é Obedecer: A Sexualidade como Dispositivo de Controle

Fomos ensinados a pensar que, por séculos, a sexualidade foi reprimida — que o corpo e o desejo foram silenciados pelas igrejas, pelas famílias, pelos Estados. E que, a partir do século XX, a liberação sexual nos teria finalmente emancipado.

Mas e se essa história estiver invertida?

Para Michel Foucault, a sexualidade nunca foi apenas reprimida — ela foi, sobretudo, investigada, classificada, colocada para falar. O poder não quis silenciar o sexo. Quis que nós falássemos sobre ele — cada vez mais, com mais detalhes, mais sinceridade.

E quanto mais falamos, mais nos submetemos a um tipo de controle sutil e eficaz: o da confissão.

A invenção da sexualidade

Foucault mostra que a “sexualidade” não é um dado natural, nem um instinto biológico simplesmente reprimido. Ela é uma construção histórica, um dispositivo de saber-poder que emerge na modernidade ocidental como forma de governar corpos, prazeres e subjetividades.

A sexualidade é, assim, produzida por discursos médicos, jurídicos, pedagógicos e religiosos, que não apenas descrevem, mas normatizam e organizam os desejos.

Fale sobre si — e obedeça

Desde os confessionários da Igreja até a psicanálise, passando pelas terapias, exames escolares, testes de aptidão, reality shows e redes sociais, fomos ensinados a nos confessar.

“Fale a verdade sobre si”, dizem os dispositivos modernos. Mas essa verdade íntima não é neutra: ela é desejada pelo poder, que busca conhecer, classificar e corrigir os sujeitos.

A confissão transforma o desejo em algo que precisa ser interpretado, diagnosticado, controlado. O sujeito que se confessa acredita estar se libertando, mas está, na verdade, participando da sua própria normalização.

A sexualidade como campo de governo

Para Foucault, a sexualidade moderna se tornou um campo estratégico de controle social. O poder age não ao reprimir diretamente, mas ao estimular discursos, práticas, categorias: homossexual, heterossexual, pervertido, anormal, sadio.

Essas classificações produzem identidades e efeitos políticos. Elas marcam o que é aceitável, o que deve ser tratado, o que precisa ser silenciado ou celebrado. O sexo, nesse sentido, não é privado — é um campo público de produção de subjetividade.

Liberdade ou nova obediência?

A explosão dos discursos sobre sexualidade na cultura contemporânea — manuais, séries, tutoriais, aplicativos, fóruns — parece sinalizar emancipação. Mas Foucault nos adverte: nem toda fala é libertadora.

Se falar sobre sexo se torna um imperativo, uma obrigação, um modo de ser reconhecido, então a confissão continua — agora como performance constante. A libertação aparente pode ser uma nova forma de obediência, onde a intimidade é colonizada pelo olhar normativo.

Conclusão: silenciar, resistir, reinventar

Romper com o dispositivo da sexualidade não significa voltar ao silêncio moralista, mas sim questionar os modos como o poder nos convida a falar de nós mesmos — e com que consequências.

Talvez seja necessário recuperar o direito ao segredo, à opacidade, ao prazer que escapa às normatividades. Talvez a verdadeira desobediência comece quando deixamos de nos confessar nos termos que o poder nos impõe — e começamos a inventar outras linguagens, outros desejos, outras formas de viver o corpo.

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