A Mercadoria como Mito: Consumir é Acreditar

Vivemos numa sociedade onde os objetos não apenas existem — eles significam. Um tênis não é apenas um calçado; é performance, status, identidade. Um celular não é apenas um instrumento de comunicação; é extensão do corpo, símbolo de pertencimento e marca de prestígio. A mercadoria moderna, longe de ser um simples produto do trabalho, tornou-se um mito — uma narrativa que organiza desejos, valores e crenças.

Consumir, portanto, é mais do que adquirir algo útil. É um ato de fé. É crer na promessa que cada mercadoria carrega: a felicidade, a juventude, a liberdade, o reconhecimento. No capitalismo contemporâneo, consumir é acreditar.

O fetichismo da mercadoria (Marx)

Karl Marx, em O Capital, já nos alertava: as mercadorias ganham uma aparência encantada, como se tivessem valor e poder próprios. Esse é o fetichismo da mercadoria: a ocultação das relações sociais (especialmente a exploração do trabalho) por trás de uma fachada de naturalidade e desejo.

A mercadoria aparece como mágica porque não vemos o que está por trás dela: o suor do operário, a cadeia de exploração global, a manipulação da escassez, o marketing que produz necessidade. É como se ela tivesse vida própria — um objeto sagrado em meio ao profano cotidiano.

A mercadoria como mito (Barthes)

Roland Barthes, em Mitologias, amplia essa crítica ao mostrar como os objetos cotidianos carregam significados ideológicos disfarçados de naturais. A propaganda, a embalagem, o design — tudo conspira para transformar o produto em mito.

O sabão em pó não vende limpeza, mas pureza moral. O carro não vende mobilidade, mas virilidade. O fast food não vende comida, mas tempo, eficiência, american way of life. Nesse universo simbólico, o consumo opera como linguagem: comprar é afirmar uma identidade, pertencer a uma narrativa, alinhar-se a um valor imaginado.

A fé do consumidor

A mercadoria mítica não precisa ser funcional — basta ser crível. O consumidor não precisa de provas: precisa acreditar que aquilo fará sentido em sua vida. Essa crença é alimentada por narrativas publicitárias, influenciadores, cultura pop e desejos inconscientes.

O ato de consumir, então, se aproxima de um ritual religioso: há templos (shopping centers), sacerdotes (influenciadores), mandamentos (moda, tendências) e promessas de salvação (felicidade, amor, sucesso). O capital cria um mundo onde a fé no objeto substitui o pensamento crítico, e a crítica parece deselegante, amarga, fora de lugar.

Crítica cultural: desmontar o mito

Pensadores da crítica cultural — como Adorno, Debord, Baudrillard e Zygmunt Bauman — mostraram que, no capitalismo avançado, a vida se estetiza, os desejos se organizam em torno de signos e a mercadoria torna-se o mediador central da experiência.

Hoje, com o avanço do capitalismo de dados, esse processo se intensifica: os algoritmos não vendem apenas produtos, vendem narrativas personalizadas para cada tipo de fé de consumo. A publicidade não vende mais apenas coisas — ela vende sentidos de vida.

Desmitificar a mercadoria é resgatar a realidade material, social e histórica que ela oculta. É perceber que o que compramos não é neutro, e que nossas escolhas não são tão livres quanto parecem.


Conclusão: Contra o feitiço, o desvelamento

Consumir é, muitas vezes, acreditar no que desejamos que seja verdade. Que aquela roupa trará autoestima. Que aquele carro trará respeito. Que aquele celular nos conectará melhor com o mundo. Mas todo mito tem uma estrutura de poder por trás.

Desfetichizar a mercadoria é um gesto político. É resgatar o valor do trabalho oculto, denunciar as promessas falsas do mercado e reabrir o espaço do comum, da cooperação e do simbólico não mercantilizado. Enquanto a mercadoria for um mito, a crítica será um ato de lucidez — e de resistência.

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