Quando pensamos em “não-violência”, muitas vezes a associamos à passividade ou à simples recusa em usar a força. Mas para a filósofa Judith Butler, a não-violência é tudo, menos uma fraqueza. É, ao contrário, uma força ativa e transformadora, profundamente ligada à ética da vida comum e à luta política por justiça.
Em seu livro A Força da Não-Violência (2020), Butler propõe uma releitura radical da não-violência: não como recuo ou neutralidade, mas como um compromisso ético-político com a preservação da vida — sobretudo das vidas mais vulneráveis.
Este artigo explora essa ideia em profundidade: o que é, afinal, a força da não-violência? E por que ela se mostra tão necessária nos tempos atuais?
O que significa “força” na não-violência?
Para Butler, não-violência não é o oposto de ação, mas uma forma específica de agir no mundo. É uma força que:
- Não se baseia na dominação, mas na solidariedade.
- Não visa destruir o outro, mas interromper os ciclos de violência.
- Reconhece que preservar a vida exige coragem, estratégia e inventividade.
Essa força se manifesta na recusa consciente da destruição, mesmo diante da injustiça. Não se trata de aceitar a opressão, mas de buscar formas de enfrentá-la que não reproduzam sua lógica violenta.
Ao contrário da ideia comum de que não-violência é fraqueza, Butler a vê como um exercício radical de poder ético.
Não-violência é interdependência
No centro da proposta de Butler está a ideia de que os seres humanos são interdependentes: nenhum sujeito é completamente autônomo, todos somos vulneráveis aos outros e dependemos de redes sociais e afetivas para viver.
Essa interdependência não é um ideal a ser atingido — é uma condição constitutiva da existência humana.
Assim, escolher a não-violência é reconhecer que a minha vida está ligada à vida do outro, mesmo quando há conflito, mesmo quando há diferença ou antagonismo. E é com base nesse reconhecimento que se constrói uma ética do cuidado, da reciprocidade e da justiça.
Contra o monopólio da violência
Butler retoma e critica a clássica ideia weberiana de que o Estado detém o “monopólio legítimo da violência”. Para ela, essa legitimidade deve ser questionada, sobretudo quando:
- O Estado aplica violência seletiva contra populações racializadas, empobrecidas ou dissidentes.
- A polícia reprime protestos enquanto protege estruturas opressoras.
- O aparato legal justifica assassinatos, expulsões, encarceramentos em massa.
Nesses contextos, responder com não-violência é resistir sem aceitar os termos da violência imposta. É buscar saídas que desarmem simbolicamente o poder, que mobilizem a solidariedade e que desafiem o monopólio do uso da força.
Não-violência como forma de luta
Inspirada em figuras como Martin Luther King Jr., Gandhi e nas práticas de movimentos sociais contemporâneos, Butler propõe pensar a não-violência como forma de ação coletiva.
Isso inclui:
- Greves, boicotes, ocupações.
- Protestos que recusam a repressão policial e resistem com criatividade.
- Reivindicações por justiça que não se baseiam na vingança, mas na reparação.
- Intervenções artísticas e performáticas que desestabilizam estruturas de poder sem recorrer à destruição.
Não se trata de idealizar uma pureza moral, mas de afirmar que a política pode ser transformadora sem ser destrutiva.
A não-violência diante da violência sistêmica
Um dos maiores desafios da não-violência é responder a contextos de violência estrutural: racismo, pobreza, transfobia, colonialismo, patriarcado.
Butler reconhece que viver sob essas violências cotidianas pode levar à revolta, ao desespero, à resistência mais direta. A não-violência, nesse caso, não é neutralidade, mas um posicionamento ativo que busca minar a legitimidade dessas estruturas sem perpetuar o ciclo de destruição.
Isso exige uma política de cuidado e de reorganização das alianças: uma ética capaz de preservar a vida mesmo sob as condições que a ameaçam constantemente.
Cuidar da vida como ato radical
No fundo, a não-violência para Butler é inseparável da ideia de que toda vida é precária, e que é dever ético e político cuidar das condições que tornam a vida vivível para todos.
Cuidar da vida, nesse sentido, é:
- Reconhecer as múltiplas formas de existência.
- Lutar contra as estruturas que decidem quem vive e quem morre.
- Construir políticas públicas, redes afetivas, práticas sociais que ampliem a proteção da vida.
Essa perspectiva se aproxima de uma ética feminista, interseccional, antirracista, anticolonial — comprometida com a redistribuição do cuidado e com a desnaturalização da violência.
Conclusão: coragem de recusar a destruição
A força da não-violência está em sua capacidade de interromper o ciclo da vingança, da punição, da exclusão. É uma força que nasce da vulnerabilidade, mas não se confunde com submissão. É uma política que desafia o poder, mas se recusa a agir nos termos do inimigo.
Para Judith Butler, é urgente repensar o que chamamos de força, de resistência, de ação política. A não-violência não é ausência de conflito, mas uma forma de travá-lo sem trair o valor fundamental que o motiva: a defesa da vida.