Por trás de muitas ideias tidas como naturais ou inevitáveis, há uma história. Mas não uma história linear, pura ou progressiva — e sim um rastro de conflitos, disputas, exclusões e acidentes. O método genealógico é uma ferramenta filosófica que busca justamente isso: interrogar o presente escavando suas origens instáveis e contingentes.
Popularizado por Michel Foucault, mas enraizado em Friedrich Nietzsche, o método genealógico não reconstrói o passado para glorificá-lo, mas para desfazer as verdades que nos governam. É uma prática crítica, histórica e política — e mais necessária do que nunca.
A origem da genealogia: Nietzsche
A genealogia aparece como método pela primeira vez em “A Genealogia da Moral” (1887), de Friedrich Nietzsche. Em vez de perguntar o que é a moral, Nietzsche pergunta: como ela surgiu? Sob quais condições históricas e psíquicas? A quem serve?
Nietzsche mostra que valores como “bem”, “mal”, “culpa” e “consciência” não são dados eternos. Eles foram construídos historicamente — muitas vezes com base em ressentimento, medo, desejo de controle e negação da vida.
A genealogia, para Nietzsche, é:
- Um martelo filosófico, que quebra os ídolos da moral;
- Uma investigação do passado, mas orientada pelo presente;
- Uma forma de desnaturalizar os valores e abrir espaço para outros modos de vida.
Foucault: a genealogia como crítica do presente
Michel Foucault retoma e expande a genealogia nietzschiana, especialmente nos anos 1970. Para ele, a genealogia é uma forma de diagnóstico crítico do presente, feita a partir de investigações históricas sobre como certos saberes, instituições e normas surgiram.
“A genealogia é cinza, paciente, atenta aos detalhes e às descontinuidades”
(Foucault, “Nietzsche, a genealogia e a história”)
Foucault aplica o método genealógico a temas como:
- A prisão (Vigiar e Punir);
- A sexualidade e a medicina (História da Sexualidade);
- A verdade e o saber (em cursos como “Segurança, Território, População”).
Ele mostra que conceitos como “normalidade”, “desvio”, “cura”, “identidade sexual”, “população” — tidos como neutros ou científicos — são produtos históricos, ligados a relações de poder.
A genealogia, em Foucault, não busca “a origem verdadeira” das coisas, mas como determinadas práticas se constituíram, se legitimaram e passaram a parecer naturais.
3. Características do método genealógico
Contra a linearidade histórica
A genealogia não conta histórias de progresso. Ela mostra rupturas, esquecimentos, acidentes, e como o passado é cheio de bifurcações — muitas delas reprimidas.
Contra as essências
Ela recusa a ideia de que existem essências fixas como “o humano”, “a sexualidade”, “o Estado”. Tudo isso é produto de práticas históricas e discursos situados.
Contra a neutralidade do saber
A genealogia mostra que todo saber está atravessado por relações de poder. Não há conhecimento “puro”; há saberes que produzem efeitos de verdade, organizam a sociedade e moldam subjetividades.
4. Por que a genealogia importa hoje?
Em tempos de discursos autoritários, essencialismos identitários e nostalgias perigosas, a genealogia oferece um antídoto: o pensamento histórico como forma de resistência. Ela nos permite:
- Questionar as normas que regulam o corpo, a sexualidade, o trabalho, a escola, a cidadania;
- Desnaturalizar discursos políticos e jurídicos que se apresentam como neutros;
- Identificar as exclusões e violências que sustentam o que é considerado “normal”;
- Imaginar outras formas de vida, fora do que nos é dado como único caminho possível.
Genealogia como prática crítica
A genealogia não é um método “técnico”, com regras fixas. É mais uma atitude filosófica, uma forma de pensar que parte da pergunta: como chegamos a ser governados desta maneira — e como poderíamos ser de outro modo?
Nas mãos de pensadores como Judith Butler, Achille Mbembe, Paul Preciado e Frantz Fanon, a genealogia se torna ferramenta para desmantelar o racismo, o colonialismo, o patriarcado, a heteronormatividade e outros regimes de poder que moldam nossos corpos e desejos.
Conclusão: pensar para transformar
A genealogia nos mostra que o mundo não precisa ser como é. Ela revela que o presente é uma construção — e que tudo que foi feito, pode ser desfeito. Isso não garante libertação imediata, mas abre o campo do possível.
Fazer genealogia é, portanto, um ato de coragem filosófica: olhar de frente para o que nos parece inevitável e dizer — não foi sempre assim, e não precisa continuar sendo.