A Verdade como Construção Histórica: Quem Decide o Que é Verdade?

A verdade é, muitas vezes, tomada como algo natural, neutro, eterno. Suponhamos que exista “a verdade dos fatos”, à qual bastaria recorrer para encerrar qualquer debate. Mas e se a verdade não fosse um espelho da realidade, e sim uma construção histórica, produzida por determinadas práticas, discursos e relações de poder?

Essa é a provocação que perpassa a obra de filósofos como Michel Foucault, que propôs uma mudança radical na forma como compreendemos a verdade: não como essência, mas como efeito.

A verdade tem história

Para Foucault, toda sociedade produz seus regimes de verdade: formas específicas de dizer o que é verdadeiro, quem pode dizer, com que autoridade, e com base em quais critérios. Não há verdade fora das condições históricas que a tornam possível.

Assim, as verdades científicas, jurídicas, médicas, morais — longe de serem neutras — estão sempre ligadas a práticas sociais e instituições que distribuem o poder de enunciar.

Por exemplo:

  • A verdade médica do século XIX, ao classificar corpos e doenças, serviu também para normalizar comportamentos e justificar exclusões.
  • A “verdade” jurídica pode variar conforme interesses do Estado e suas estruturas de poder.
  • A escola, a universidade, a mídia e até as ciências participam da produção de um discurso que pretende ser “verdadeiro”, mas que responde a lógicas políticas e históricas específicas.

Quem tem o poder de dizer a verdade?

A pergunta foucaultiana fundamental é: quais são os mecanismos que legitimam a verdade em cada época? Ou, em outras palavras: quem tem o direito de falar? Quem é escutado? Quem é desacreditado?

A verdade, nesse sentido, é sempre um campo de disputa. Não se trata de negar a existência de fatos, mas de reconhecer que os fatos só adquirem sentido dentro de discursos específicos, estruturados historicamente.

As verdades mudam — e isso é político

Se a verdade é construída historicamente, ela pode mudar. E isso tem implicações profundas:

  • Nos direitos civis: o que antes era “natural” (como a inferioridade da mulher ou de grupos racializados) foi contestado, desnaturalizado e redescrito.
  • Na ciência: teorias que pareciam inquestionáveis foram revistas ou abandonadas.
  • Na política: regimes autoritários produzem verdades convenientes ao poder — e, por isso, disputar a verdade é também disputar o poder.

Contestar uma verdade estabelecida não é apenas um exercício intelectual, mas uma ação política e social transformadora.

A verdade não é o oposto da mentira

Ao dizer que a verdade é construída, não se está defendendo o relativismo absoluto ou o negacionismo. Ao contrário: o objetivo é mostrar que a verdade exige crítica constante, vigilância e responsabilidade.

A verdade não é o oposto da mentira, mas o efeito de práticas discursivas que podem ser desfeitas, questionadas, reinventadas.

Conclusão: pensar a verdade como prática

A noção de verdade como construção histórica nos convida a uma atitude crítica. Não se trata de abandonar a busca pela verdade, mas de compreender como ela é produzida, por quem, e com que efeitos.

É uma maneira de escapar tanto do dogmatismo quanto da manipulação. Uma forma de abrir espaço para outras verdades, outras vozes, outras narrativas, especialmente aquelas que foram silenciadas pela história oficial.

Como dizia Foucault:
“A verdade não é exterior ao poder. A verdade é deste mundo.”

E por isso mesmo, ela pode — e deve — ser constantemente repensada, disputada e reconstruída.

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