O que acontece quando a lei, que deveria proteger, se retira — e, paradoxalmente, é justamente essa retirada que dá ao poder sua força máxima?
Essa é a questão central que o filósofo italiano Giorgio Agamben levanta ao analisar o estado de exceção, um conceito que se tornou cada vez mais relevante diante de crises políticas, guerras, pandemias e medidas emergenciais.
Mais do que um dispositivo jurídico temporário, o estado de exceção revela como, sob certas circunstâncias, a suspensão da lei pode se tornar o próprio modo de governar.
O que é o estado de exceção?
Inspirado por Carl Schmitt, Agamben observa que o estado de exceção é uma situação em que as autoridades suspendem temporariamente as leis e garantias constitucionais, alegando a necessidade de enfrentar uma crise extrema.
Nesses momentos, o poder se move para além das regras que o limitam — e, ao fazê-lo, redefine os limites entre legalidade e arbitrariedade.
O problema, segundo Agamben, é que o “temporário” pode se tornar permanente. O que era exceção se transforma em regra.
Da Roma Antiga à política contemporânea
O conceito tem raízes no instituto romano do iustitium, quando as leis eram suspensas em situações de perigo.
Mas Agamben argumenta que, no mundo moderno, o estado de exceção deixou de ser um recurso raro.
Guerras, atentados, crises econômicas, catástrofes naturais e emergências sanitárias se tornam justificativas para ampliar o poder do Estado, restringindo direitos e liberdades.
Quando a exceção se normaliza
Nos últimos anos, vimos diferentes versões do estado de exceção em ação:
- Pós-11 de setembro: leis antiterrorismo que expandiram vigilância e detenção sem julgamento;
- Crises migratórias: campos de detenção e zonas de não-direito para refugiados;
- Pandemia de COVID-19: restrições de circulação, lockdowns e medidas emergenciais que, em alguns contextos, se estenderam para além da emergência sanitária.
Agamben não nega que crises exijam respostas rápidas, mas alerta para o risco de institucionalizar a suspensão das garantias como parte da governança cotidiana.
Vida nua: o corpo no centro do poder
Para Agamben, o estado de exceção está intimamente ligado à ideia de vida nua (bare life): a redução do ser humano a sua condição biológica, separada de direitos políticos.
Quando a lei se suspende, o cidadão pode ser reduzido a mero corpo — protegido ou descartado segundo critérios de utilidade ou ameaça.
Essa lógica é perigosa porque, ao decidir quem merece proteção e quem pode ser excluído, o poder soberano se coloca acima da própria lei.
Por que isso importa hoje
O estado de exceção não é apenas um tema de filósofos ou juristas — é algo que molda nossa experiência política e nossas liberdades.
Ao aceitarmos que a suspensão da lei seja “necessária” sem questionar seus limites e duração, corremos o risco de viver em um regime onde a exceção é a norma.
A reflexão de Agamben nos convida a pensar:
- Quais crises justificam a suspensão da lei?
- Quem decide quando a exceção termina?
- O que acontece com os direitos perdidos durante esse período?
Conclusão – Vigilância ética sobre o poder
Compreender o estado de exceção é fundamental para qualquer sociedade que se pretenda democrática.
Não se trata de negar que emergências existam, mas de garantir que o excepcional não se transforme em uma desculpa para governar sem limites.
Agamben nos lembra que, muitas vezes, o maior perigo para a liberdade não vem de fora, mas do uso interno da exceção como regra.
A verdadeira defesa da democracia exige vigilância constante, mesmo — e especialmente — em tempos de crise.
💡 Aprofunde-se no tema
No ebook O Estado de Exceção: Agamben, Biopolítica e a Suspensão do Direito, exploramos em detalhe como essa lógica se aplica à política contemporânea e aos riscos que ela representa para a cidadania.