O que significa dizer que o poder não apenas reprime, mas administra a vida? Essa foi uma das perguntas centrais do filósofo francês Michel Foucault, que cunhou o conceito de biopoder para descrever como as sociedades modernas passaram a exercer controle sobre os corpos e as populações, não mais apenas pela força ou pela lei, mas por meio da gestão da saúde, da sexualidade, da reprodução, da higiene e da normalidade.
Pensar o biopoder é entender como a vida foi capturada pelo poder — e como esse poder atua nos detalhes mais íntimos da existência.
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Origens do Conceito
Michel Foucault apresentou o conceito de biopoder principalmente em seus cursos no Collège de France, entre 1975 e 1979, e em obras como “História da Sexualidade – Volume I” (1976). Ele investigava a passagem das sociedades soberanas (onde o rei tinha o poder de matar) para as sociedades disciplinares e biopolíticas, onde o poder se volta a fazer viver e deixar morrer — em vez de simplesmente punir ou executar.
O que é o biopoder?
O biopoder é o conjunto de tecnologias e estratégias de poder que visam regular a vida humana em escala individual e coletiva. Ele atua em dois níveis:
1. Disciplinarização dos corpos (anátomo-política)
O biopoder molda o corpo individual: educa, corrige, treina, organiza. Isso acontece em instituições como:
- Escolas (controle do comportamento e do tempo);
- Quartéis (formação de corpos obedientes);
- Hospitais e clínicas (normalização da saúde);
- Fábricas (organização do trabalho).
Essa dimensão do biopoder visa tornar o corpo útil e dócil — produtivo, eficiente, obediente.
2. Regulação da população (biopolítica)
A segunda dimensão do biopoder é voltada à população como corpo coletivo. Aqui, o foco é gerir:
- Taxas de natalidade e mortalidade;
- Doenças e saúde pública;
- Migração e urbanização;
- Estatísticas e demografia.
O poder se manifesta de forma preventiva, estatística e normativa, criando padrões do que é “normal” e “anormal”, “saudável” ou “perigoso”.
Do soberano ao gestor da vida
A grande virada que Foucault identifica é que, enquanto o poder soberano tradicional se resumia ao direito de tirar a vida (“fazer morrer”), o biopoder moderno passa a produzir vida, a otimizá-la, a regulá-la. Mas isso não significa que o poder se tornou menos violento. Ao contrário: agora ele se infiltra no cotidiano, no corpo, na sexualidade, no comportamento.
Essa gestão da vida é muitas vezes naturalizada — aparece como ciência, como cuidado, como proteção. Mas por trás da “neutralidade” técnica do discurso médico ou jurídico, Foucault mostra que há sempre relações de poder operando.
Biopoder e Racismo de Estado
Um ponto crucial que Foucault destaca é que, para o biopoder funcionar plenamente, ele precisa de um mecanismo que justifique a exclusão e até a morte de certas vidas: o racismo de Estado.
Ao dividir a população entre “os que devem viver” e “os que podem morrer” (doentes, desviantes, racializados), o biopoder autoriza a morte em nome da vida. É aqui que ele se articula, por exemplo, com o nazismo, o colonialismo, o racismo institucional e, posteriormente, com o conceito de necropolítica, elaborado por Achille Mbembe.
Biopoder no presente
O biopoder continua atuando de forma intensa e sofisticada nas sociedades contemporâneas. Exemplos incluem:
- Controle da saúde pública (vacinação, campanhas sanitárias, pandemia);
- Regulação da sexualidade (educação sexual, controle de natalidade);
- Gestão da imigração (fronteiras, deportações, políticas de acolhimento);
- Vigilância e tecnologia (monitoramento de corpos e dados pessoais);
- Normas de gênero e aparência (corpos “aceitáveis”, práticas de medicalização, cirurgias corretivas).
A questão que permanece é: quem define os critérios da normalidade? Quem se beneficia da gestão da vida? E quem é deixado de fora?
Por que pensar o biopoder hoje?
Em um mundo marcado por crises sanitárias, racismo estrutural, exclusão social e hipercontrole digital, o conceito de biopoder nos permite ver o poder onde ele parece invisível — nos hospitais, nos dados, nas leis, nas escolas, nos discursos do cuidado.
Mais do que uma denúncia, Foucault nos oferece uma lente crítica para compreender como o poder atua não apenas por coerção, mas por meio da produção da própria vida como objeto de governança.