A colonização não se deu apenas por meio da força militar ou da dominação econômica. Ela também operou — e ainda opera — nos campos da linguagem, do saber, da cultura e da psique. Colonizar foi, e continua sendo, moldar a maneira como os sujeitos pensam, sentem e se veem no mundo.
Por isso, descolonizar não é apenas um ato político externo. É também uma tarefa interna, subjetiva, afetiva e simbólica. Trata-se de romper com as estruturas mentais herdadas do colonialismo — e, nesse processo, a psicologia pode ser uma poderosa ferramenta de resistência.
O colonialismo como trauma psíquico
O pensador martinicano Frantz Fanon, em obras como Pele Negra, Máscaras Brancas e Os Condenados da Terra, foi um dos primeiros a analisar o efeito psicológico da dominação colonial. Ele mostrou que o colonialismo não apenas explora — ele humilha, inferioriza, desumaniza.
Os sujeitos colonizados aprendem a se ver com os olhos do colonizador. Interiorizam o racismo, desejam embranquecer-se, desvalorizam sua cultura. Essa alienação da subjetividade é um efeito profundo do poder colonial.
Descolonizar a mente, para Fanon, era romper esse ciclo: recusar a identidade imposta, reencontrar a dignidade e reinventar-se como sujeito político e afetivo.
Psicologia crítica e insurgente
A psicologia, muitas vezes, foi cúmplice do colonialismo — ao patologizar saberes indígenas, ao impor modelos europeus de subjetividade, ao naturalizar padrões de comportamento brancos e ocidentais como “universais”.
No entanto, diversos psicólogos e psicólogas vêm reivindicando uma psicologia crítica, popular, feminista, negra, indígena, decolonial. Uma psicologia que:
- Reconheça os traumas históricos da escravidão, da colonização e do racismo estrutural;
- Valorize os saberes e práticas comunitárias não ocidentais;
- Questione os modelos hegemônicos de saúde mental, identidade e normalidade;
- Atue como aliada na luta por memória, justiça e pertencimento.
Essa psicologia não busca apenas curar sintomas, mas curar feridas coloniais que atravessam gerações.
Linguagem, desejo e resistência
O escritor queniano Ngũgĩ wa Thiong’o, no ensaio Descolonizar a Mente, mostra como o colonialismo penetrou também pela linguagem: ao impor o inglês e desvalorizar as línguas africanas, o império destruiu modos de narrar, pensar e sentir o mundo.
Descolonizar a mente, então, é também recuperar o direito de contar a própria história — em sua própria língua, com seus próprios mitos, afetos e lógicas.
Do mesmo modo, pensadoras como Gloria Anzaldúa mostram que descolonizar é romper com as fronteiras internas impostas pelo racismo, pelo sexismo e pela normatividade. É reconstruir uma subjetividade que foi fragmentada pela opressão.
O eu como território em disputa
A mente não é um espaço neutro. Ela é território em disputa. Cada crença, cada linguagem, cada desejo, cada ferida pode carregar marcas do colonialismo.
Descolonizar a mente, portanto, é um processo contínuo que envolve:
- Escavar as raízes do sofrimento psíquico em contextos históricos e sociais.
- Reafirmar identidades silenciadas ou patologizadas.
- Construir práticas de cuidado e cura enraizadas na coletividade e na cultura.
- Resistir à colonização do imaginário promovida por mídias, escolas e religiões.
Conclusão: pensar é também descolonizar
Descolonizar a mente não é um gesto individualista. É uma forma de fazer política com o pensamento, o corpo e o afeto. É insurgir contra os dispositivos que controlam a subjetividade e reapropriar-se de si.
A psicologia pode, sim, ser instrumento de normalização e dominação. Mas também pode ser um instrumento de emancipação — desde que se alie às lutas históricas dos povos racializados, indígenas, dissidentes e marginalizados.
Em última instância, descolonizar a mente é restituir a imaginação coletiva como ferramenta de liberdade. Porque pensar, sonhar e sentir de outras formas é já um ato de revolta.