O corpo humano nunca foi neutro: sempre foi alvo de regulações, práticas, discursos e intervenções. Mas, segundo o filósofo e ativista Paul B. Preciado, vivemos hoje sob um regime radicalmente novo: a farmacopornografia.
Este conceito, central em sua obra “Testo Junkie: Sexo, Drogas e Biopolítica no Regime Farmacopornográfico” (2008), propõe que o capitalismo contemporâneo exerce seu poder sobre os corpos por meio de uma combinação de tecnologias químicas (farmacêuticas) e midiáticas (pornográficas).
Mais do que um diagnóstico, a farmacopornografia é uma chave de leitura para compreender como nossos corpos, desejos e subjetividades são produzidos, controlados e rentabilizados na sociedade atual.
O que é farmacopornografia?
Paul B. Preciado cria o termo unindo duas dimensões essenciais do poder contemporâneo:
1. Farmacológica: o uso sistemático de substâncias químicas (hormônios, antidepressivos, ansiolíticos, contraceptivos, anabolizantes) para regular e modificar os corpos.
2. Pornográfica: a exposição, circulação e normatização dos corpos e sexualidades através das imagens, principalmente via mídias digitais, publicidade e cultura pop.
A farmacopornografia é, portanto, um regime de gestão dos corpos em que as fronteiras entre natureza e cultura, biologia e tecnologia, íntimo e público, se desfazem.
Como diz Preciado:
“O regime farmacopornográfico é o conjunto de técnicas de produção, de controle e de distribuição dos corpos, dos sexos e dos desejos.”
Do biopoder à farmacopornografia
A proposta de Preciado se inspira e radicaliza o conceito de biopoder, elaborado por Michel Foucault: a ideia de que o poder moderno gere a vida, regulando corpos e populações.
Mas, para Preciado, o biopoder clássico, centrado na disciplina e na vigilância, deu lugar a uma gestão mais sofisticada:
- Mais molecular, atuando diretamente sobre a bioquímica do corpo;
- Mais mediática, produzindo subjetividades e desejos através da imagem e do consumo.
Assim, enquanto o biopoder moldava corpos por meio da escola, da medicina e da prisão, a farmacopornografia atua através de:
- Clínicas estéticas;
- Indústrias farmacêuticas;
- Plataformas de pornografia;
- Redes sociais;
- Produtos de bem-estar e saúde.
Exemplos da farmacopornografia
O conceito pode parecer abstrato, mas está presente no cotidiano de maneira concreta:
- Uso massivo de anticoncepcionais e hormônios para controlar a reprodução e modificar identidades de gênero.
- Cirurgias plásticas e estéticas como práticas comuns e desejáveis.
- Consumo de Viagra ou testosterona para regular a performance sexual.
- Produção e circulação em larga escala de imagens pornográficas, que moldam o imaginário erótico e o próprio desejo.
- Cultura fitness, onde regimes alimentares, suplementos e fármacos modelam o “corpo ideal”.
- Influencers e celebridades como modelos corporais mediados por filtros, plásticas e substâncias químicas.
Esses exemplos mostram como a subjetividade contemporânea é produzida na intersecção entre química, mídia e mercado.
O corpo como laboratório
Uma das experiências centrais de Preciado foi a auto-administração de testosterona, fora de qualquer protocolo médico ou clínico. Esse gesto não foi apenas pessoal, mas também filosófico e político: um experimento que revelou como os corpos podem ser hackeados, modificados, transformados.
Para Preciado, todos hoje vivemos em um contexto onde nossos corpos são, em maior ou menor medida, laboratórios: modulamos o humor com medicamentos, ajustamos o gênero com hormônios ou cirurgias, ajustamos a aparência com filtros e cosméticos.
Assim, a distinção entre “natural” e “artificial” torna-se irrelevante. O corpo farmacopornográfico é um corpo tecnopolítico.
A indústria do desejo
Preciado também aponta como a farmacopornografia transforma o desejo em mercadoria. Não apenas consumimos produtos, mas também modelos de desejo: o corpo que se deseja ter, o corpo que se deseja desejar.
A pornografia não é apenas um gênero cultural: é um dispositivo político que molda padrões de sexualidade, afetividade e aparência.
Do mesmo modo, a indústria farmacêutica não é apenas médica: é uma força produtiva que cria necessidades, regula comportamentos e define o que é considerado saudável, produtivo, belo ou desejável.
Resistir à farmacopornografia
Preciado não propõe simplesmente “sair” da farmacopornografia — até porque não é possível escapar completamente desse regime. Ele propõe reconhecer como somos moldados por ele e subverter seus dispositivos.
Como?
- Experimentando novas formas de modificação corporal, fora dos protocolos normativos.
- Produzindo imagens e narrativas que escapem à lógica heteronormativa e capitalista.
- Criando políticas do corpo baseadas no cuidado, na autonomia e na liberdade, e não no controle e na mercantilização.
- Reivindicando a potência criativa dos corpos dissidentes, trans, queer, intersexuais, que desafiam a matriz farmacopornográfica.
Conclusão: corpos sob gestão, corpos em invenção
O conceito de farmacopornografia nos ajuda a entender como o poder atua hoje: não apenas proibindo, mas estimulando, induzindo, moldando, rentabilizando os corpos.
Vivemos sob um regime onde o controle se dá não mais pela repressão direta, mas pela produção de subjetividades que desejam aquilo que o mercado oferece.
Reconhecer isso é fundamental para pensar políticas de resistência e de invenção: transformar o corpo de objeto passivo de gestão em espaço ativo de criação e liberdade.
Como Preciado sugere, talvez o caminho não seja voltar a um ideal impossível de “natureza”, mas assumir o corpo como campo político e estético, onde se decide — a cada intervenção — que formas de vida queremos criar e habitar.
Se quiser, posso complementar esse artigo com um glossário sobre os conceitos de Preciado, um resumo das ideias de “Testo Junkie” ou um comparativo entre biopoder e farmacopornografia. Quer seguir por alguma dessas direções?