Vivemos em uma era em que os corpos são modificados, regulados e performados por hormônios, pílulas, cirurgias, cosméticos, pornografia e redes sociais. Nesse contexto, Paul B. Preciado propõe um conceito que redefine radicalmente como entendemos a subjetividade contemporânea: farmacopornografia.
Trata-se de uma crítica à forma como o capitalismo avançado passou a gerir a sexualidade, o gênero e o prazer — não mais por repressão direta, mas por meio de tecnologias bioquímicas e midiáticas que operam de dentro para fora dos corpos.
O que é farmacopornografia?
Segundo Preciado, farmacopornografia é o nome de um novo regime de poder que substituiu os antigos dispositivos disciplinares descritos por Michel Foucault. Se o biopoder tradicional administrava a vida por meio de instituições como a escola, a prisão e o hospital, o regime farmacopornográfico atua por meio de substâncias químicas e imagens midiáticas, penetrando diretamente o corpo e o desejo.
Este regime é sustentado por dois grandes eixos:
- Fármaco: hormônios, antidepressivos, estimulantes, pílulas anticoncepcionais, cirurgias plásticas, cosméticos. São tecnologias químicas que ajustam, normatizam e otimizam os corpos de acordo com os padrões do capital.
- Pornografia: imagens eróticas, performances de gênero, sexualidades midiáticas, redes sociais. São tecnologias visuais que produzem subjetividades desejáveis, normativas, consumíveis.
A junção desses dois eixos cria corpos tecnicamente fabricados, onde gênero, sexualidade e identidade não são mais considerados naturais, mas produtos bioindustriais.
O corpo como laboratório político
Em Testo Junkie, Preciado descreve sua auto-administração de testosterona sem supervisão médica como uma forma de desobediência somática. Não se trata de “mudar de sexo”, mas de transformar o próprio corpo em um laboratório de resistência política, fora dos protocolos institucionais de controle.
O corpo, nessa lógica, deixa de ser um organismo passivo e se torna um campo de experimentação estética, política e epistemológica. Um corpo que rejeita a normatividade farmacopornográfica — que se autoprograma, que se reinventa.
Gênero, prazer e poder
O regime farmacopornográfico também regula o prazer. O orgasmo, a libido, a excitação passam a ser monitorados, estimulados ou corrigidos por medicamentos, imagens e discursos. O gênero é performado, modulado, anestesiado ou excitado de acordo com a lógica do consumo e da visibilidade.
Preciado argumenta que, nessa estrutura, o corpo é um produto e uma plataforma ao mesmo tempo. Ele precisa ser vendável, desejável, compatível com os padrões de gênero, beleza e sexualidade promovidos pelas indústrias midiáticas e químicas.
Resistir à farmacopornografia
Resistir a esse regime não significa rejeitar a tecnologia ou voltar a um corpo “natural” (ideia que Preciado também questiona). A resistência passa por hackear os dispositivos: usar os hormônios de maneira subversiva, explorar formas alternativas de prazer, criar identidades fluídas, desobedecer aos roteiros sexuais e estéticos impostos.
Essa resistência é micropolítica, poética, corporal. Não se trata apenas de falar — é o corpo que protesta, que escreve sua crítica, que encarna a ruptura.
Conclusão: o corpo como campo de batalha
A farmacopornografia nos obriga a encarar o corpo como um território de disputas políticas. Não há fora do poder — mas há maneiras de reapropriar-se dos dispositivos que nos moldam. O desafio está em habitar esse corpo-máquina de forma insubmissa, inventiva, crítica.
Para Preciado, não existe subjetividade fora da tecnologia. Mas é possível imaginar uma tecnopolítica dissidente, onde os corpos não sejam apenas otimizados para o capital, mas libertados para a experimentação, o prazer e a desobediência criadora.