O termo necropolítica tem ganhado cada vez mais destaque nos debates contemporâneos sobre violência, racismo, segurança pública, controle estatal e desumanização. O conceito foi desenvolvido pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, e propõe uma ampliação radical das discussões sobre o poder moderno, especialmente nas suas formas mais brutais e letais.
Ao invés de pensar apenas quem tem o direito de viver, a necropolítica pergunta: quem pode ser exposto à morte sem escândalo? Quem tem o corpo vulnerável à bala, à fome, ao abandono?
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De Foucault a Mbembe: Do biopoder à necropolítica
A noção de necropolítica é uma resposta crítica ao conceito de biopoder, desenvolvido por Michel Foucault. Para Foucault, as sociedades modernas passaram a exercer poder não só por meio da repressão (como nas sociedades soberanas), mas através da administração da vida — saúde pública, estatísticas, controle de natalidade, disciplina dos corpos.
Mbembe, no entanto, argumenta que esse modelo é insuficiente para descrever os contextos de violência extrema — especialmente nas sociedades pós-coloniais, marcadas pelo racismo estrutural, pela guerra permanente e pela precarização da vida. Ele propõe, então, o conceito de necropolítica: o poder de decidir quem deve viver e quem pode morrer.
O que é necropolítica?
A necropolítica é, nas palavras de Mbembe, o uso do poder para submeter corpos à morte, à invisibilidade ou à desumanização. Trata-se de uma política que não apenas negligencia a vida, mas a organiza em torno da morte.
Esse poder pode se manifestar de diversas formas:
- Guerra e militarização permanente: quando populações inteiras são tratadas como inimigas internas.
- Racismo institucional: que produz zonas de morte onde certos corpos são considerados descartáveis.
- Controle policial e carcerário: onde o Estado não apenas pune, mas expõe à morte seletiva (como nos autos de resistência, genocídio da juventude negra, etc.).
- Colonialismo e pós-colonialismo: territórios historicamente explorados que permanecem marcados pela lógica de extermínio e abandono.
Exemplos de necropolítica
Mbembe aponta que a necropolítica se manifesta de modo explícito em zonas de exceção, como:
- Campos de refugiados, onde milhões vivem em estado de suspensão de direitos.
- Favelas e periferias urbanas, tratadas como espaços militarizados, onde a morte é frequente e normalizada.
- Regiões ocupadas ou em guerra, como a Palestina, onde o aparato de segurança transforma o cotidiano em um campo de batalha.
Mas a necropolítica não se restringe a territórios longínquos: ela está presente nos sistemas penitenciários, nos necrotrabalhos (como o de entregadores durante a pandemia), na omissão do Estado em políticas de saúde para populações marginalizadas, no controle das fronteiras e na recusa de acolhimento de migrantes.
A necropolítica no Brasil
O Brasil é um caso emblemático da aplicação da necropolítica. Os números são alarmantes: milhares de mortes por violência policial, em sua maioria de jovens negros e pobres; uma política carcerária punitivista e racista; a militarização das periferias; e a precarização radical de comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas.
Durante a pandemia de COVID-19, a necropolítica ficou ainda mais evidente: populações vulneráveis foram deixadas à própria sorte, sem acesso a políticas de saúde eficazes, enquanto discursos negacionistas e anticientíficos ampliavam a morte evitável.
Resistir à necropolítica: a potência da vida
Embora o conceito de necropolítica seja sombrio, ele não é apenas um diagnóstico do horror — é também um chamado à resistência. Se há políticas da morte, também há políticas da vida: práticas de cuidado, solidariedade, ocupação do espaço público, reinvenção de corpos e subjetividades.
Movimentos sociais, redes de apoio, práticas comunitárias, ativismos antirracistas, feministas e trans têm sido formas concretas de responder à necropolítica com políticas do afeto, da proteção e da existência.
Por que pensar a necropolítica hoje?
Vivemos tempos marcados pela normalização da violência, pela indiferença à dor alheia e pela gestão seletiva das vidas. Pensar a necropolítica é, portanto, reconhecer a persistência da lógica colonial no presente, e enfrentar os mecanismos que decidem quem é plenamente humano — e quem pode ser descartado.
Mais do que um conceito acadêmico, a necropolítica é uma lente ética e política para compreender os conflitos de nosso tempo — e para recusar um mundo onde algumas vidas valem menos do que outras.