Karl Marx, ao analisar a mercadoria em O Capital, identificou um dos mecanismos mais sutis e poderosos do capitalismo: o fetichismo da mercadoria. Trata-se do processo pelo qual os produtos do trabalho humano ganham uma aparência mágica e autônoma, escondendo as relações sociais e de exploração que os produzem. No século XXI, essa lógica não desapareceu — ela se transformou e se intensificou. Vivemos hoje o fetichismo dos dados, das plataformas e dos algoritmos.
Do fetiche da mercadoria ao fetiche do algoritmo
No capitalismo industrial analisado por Marx, o fetiche se manifestava quando uma mercadoria como um casaco ou uma cadeira parecia ter “valor” por si mesma, como se ela possuísse valor intrínseco, e não oriundo do trabalho social que a produziu. Esse valor se dissociava do trabalhador e do processo de produção.
Hoje, o mesmo fenômeno ocorre, mas de forma mais sofisticada: as plataformas digitais transformam nossos dados, preferências, interações e comportamentos em mercadorias, mas fazem isso de modo invisível. O algoritmo é apresentado como neutro, objetivo, quase místico. Suas decisões parecem naturais — mas, como no fetiche da mercadoria, há um processo social invisibilizado por trás: a extração de valor do comportamento humano.
O fetiche da neutralidade: “é o algoritmo”
Frases como “foi o algoritmo que decidiu” ou “o algoritmo me recomenda isso” mostram como personificamos os sistemas técnicos, como se fossem entidades autônomas. Esquecemos que esses algoritmos foram programados por humanos, dentro de empresas com interesses econômicos claros, com objetivos de lucro e controle.
A personalização de conteúdos, a curadoria das redes sociais, os resultados dos motores de busca — tudo isso opera por trás de uma aparência de imparcialidade. No entanto, as escolhas feitas pelos algoritmos reproduzem e aprofundam desigualdades, reforçam padrões de consumo, e moldam a própria percepção da realidade.
Assim como no fetichismo da mercadoria, o que aparece como natural é, na verdade, o resultado de relações sociais e técnicas profundamente determinadas por interesses de classe.
Dados como nova mercadoria-fetiche
No capitalismo contemporâneo, nossos dados — gostos, hábitos, geolocalização, tempo de atenção — são transformados em valor. Mas, como no fetichismo da mercadoria, essa transformação é opaca para o usuário. Você usa um app “gratuito”? Na verdade, você é o produto. E como esse produto é vendido, segmentado e precificado? Quase nunca se sabe.
A mercadoria digital tem uma nova camada de fetiche: ela não só esconde o trabalho por trás dela (desenvolvedores, moderadores, trabalhadores invisíveis), mas também camufla o processo de vigilância e captura de subjetividades.
Crítica cultural: o sujeito algoritimizado
Na era dos algoritmos, o fetichismo não apenas transforma objetos — ele forma subjetividades. O sujeito contemporâneo, hipermediado por plataformas, naturaliza a lógica do engajamento, da performance e da autoexposição como se fossem livres escolhas pessoais, quando na verdade estão profundamente condicionadas por arquiteturas de poder algorítmico.
A crítica cultural marxista, nesse contexto, tem o desafio de trazer à tona o que está oculto sob a lógica técnica: mostrar que por trás de cada clique há uma estrutura de exploração, que por trás de cada recomendação existe um processo de mercantilização da vida.
Conclusão: precisamos reencantar o social
Marx desvendou o fetiche para nos fazer ver que por trás da mercadoria há pessoas, trabalho e exploração. Hoje, precisamos fazer o mesmo com os algoritmos. Desfetichizar o digital é uma tarefa urgente: recuperar a consciência de que os dados, os sistemas e os conteúdos que consumimos são moldados por relações de poder, de classe e de capital.
O algoritmo não é neutro. O like não é inocente. A interface não é transparente. Só ao perceber isso podemos começar a pensar em alternativas verdadeiramente emancipatórias na era digital.