O Mito do Gênero Natural: Como Desconstruí-lo na Clínica e na Política

“Homem nasce homem, mulher nasce mulher”?

A frase acima ainda circula com força, tanto nas rodas familiares quanto nos discursos políticos e, sim, até dentro da clínica. Mas o que ela carrega, na verdade, é um mito: o da naturalização do gênero — a ideia de que ele é biológico, fixo, dado desde o nascimento.

Hoje, com contribuições fundamentais de pensadoras como Judith Butler, Paul B. Preciado, Foucault e autores da psicanálise contemporânea, já podemos afirmar: gênero é construção social, histórica e performativa. Mas… como desconstruir isso na prática?

Este artigo propõe caminhos para questionar a ideia de “gênero natural” em dois campos onde ele se mostra especialmente resistente: a clínica e a política.

1. O que significa “gênero natural”? E por que isso é um mito?

O discurso de que gênero é uma realidade biológica parte da suposição de que há uma correspondência direta entre sexo (biológico) e identidade (gênero). Ou seja: pênis = homem = masculinidade; vagina = mulher = feminilidade.

Esse raciocínio:

  • Ignora a complexidade do corpo e da psique;
  • Elimina experiências trans, não-binárias, intersexo;
  • Produz sofrimento ao tentar ajustar o sujeito a um ideal normativo.

O “natural” aqui serve a um propósito ideológico: normalizar certos corpos e subjetividades e excluir outros.

2. Judith Butler e a performatividade do gênero

Judith Butler, em “Problemas de Gênero”, afirma que gênero não é algo que se é, mas algo que se faz. Ou seja, não existe um “núcleo” de identidade de gênero no interior da pessoa — o que existe é uma série de atos performativos repetidos ao longo do tempo que constroem o que é visto como “masculino” ou “feminino”.

Essa repetição é exigida socialmente. E ao mesmo tempo em que nos constitui, também nos aprisiona.

👉 Assim, desnaturalizar o gênero é perceber que a norma é uma ficção poderosa — mas ainda assim, uma ficção.

3. A clínica e o risco da normatividade

Na clínica, escutamos sujeitos tentando dar sentido à própria existência. Quando partimos de um pressuposto normativo de gênero, já limitamos as possibilidades de elaboração psíquica.

Exemplos de efeitos clínicos do mito do gênero natural:

  • Pressão para “corrigir” identidades de gênero divergentes;
  • Medicalização e patologização de experiências trans;
  • Suposição de que o desejo “deveria” seguir determinada direção (ex: heterossexualidade obrigatória);
  • Silenciamento de angústias ligadas à não conformidade de gênero.

Uma escuta ética precisa suspender a norma para escutar o sujeito.

4. A política do corpo: o gênero como território de disputa

O corpo é o palco onde se inscrevem as normas — e por isso, também é campo de resistência. Nos debates políticos, vemos tentativas de reafirmar o mito do gênero natural como forma de controle:

  • Projetos de lei anti-gênero;
  • Ataques à educação sexual e decolonial;
  • Censura à literatura e arte LGBTQIA+;
  • Políticas públicas baseadas em noções biológicas de masculinidade e feminilidade.

Desconstruir o gênero na política exige reconhecer que as normas que governam os corpos não são neutras: são raciais, de classe, capacitistas, coloniais.

5. Caminhos para a desconstrução

Na clínica:

  • Escute o sujeito antes de escutar a norma;
  • Evite interpretar o sofrimento como “desvio”;
  • Estude os autores que tensionam o binarismo (Butler, Preciado, Lou Sullivan, transfeminismos, psicanálise queer);
  • Questione os próprios atravessamentos inconscientes do/a analista.

Na política (e na educação):

  • Apoie práticas pedagógicas que problematizam o essencialismo;
  • Lute por políticas públicas que garantam o direito à autodeterminação de gênero;
  • Visibilize epistemologias trans, negras, indígenas e feministas interseccionais.

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