O que significa ser “eu” em uma época em que identidades, afetos, desejos e corpos são moldados por plataformas digitais, intervenções químicas e sistemas algorítmicos? O sujeito contemporâneo já não é mais o indivíduo cartesiano da razão autônoma. Tampouco é apenas produto das instituições disciplinares tradicionais, como escola, família ou igreja.
Vivemos uma nova era da constituição do eu: a era da subjetividade tecnopolítica.
Esse conceito se refere a um tipo de subjetividade produzida por tecnologias bioquímicas, midiáticas e digitais, que intervêm diretamente no corpo, na linguagem e no desejo. Em vez de um sujeito “natural”, temos agora corpos conectados, hormonizados, performáticos e governados por dados.
O corpo como interface política
Para autores como Paul B. Preciado, o corpo contemporâneo se tornou um campo de experimentação tecnológica e política. Somos atravessados por hormônios (naturais e sintéticos), cosméticos, aplicativos, filtros, cirurgias, suplementos, algoritmos — e tudo isso atua na produção de gênero, identidade e valor.
Na lógica do capitalismo farmacopornográfico, como define Preciado, o corpo é tecnologicamente gerenciado para se adequar a normas de visibilidade, desejo e desempenho. Não se trata mais de controlar os corpos pela repressão, mas de regulá-los por meio da otimização, vigilância e autogestão.
Eu, mídia e performance
A mídia digital é um dos principais dispositivos tecnopolíticos. Nas redes sociais, somos sujeitos que performam constantemente sua própria imagem, buscando reconhecimento, afeto e relevância.
Essa performance — altamente mediada por filtros, métricas e expectativas de engajamento — não é “falsa”. Ela participa da constituição real do eu, moldando afetos, ansiedades, desejos e autoimagem.
Como aponta Judith Butler, o sujeito é sempre performativo — mas, agora, essa performance ocorre em tempo real, sob o olhar de máquinas que medem, ranqueiam e nos dizem o que vale ou não.
Algoritmos que sabem mais de você do que você mesmo
Na subjetividade tecnopolítica, os algoritmos não apenas sugerem conteúdos — eles preveem comportamentos, organizam relações afetivas, regulam a atenção, moldam o desejo e capturam dados que passam a compor nosso “eu digital”.
Plataformas como TikTok, Instagram ou Spotify, por exemplo, constroem perfis subjetivos baseados em padrões de consumo e engajamento, operando como espelhos que não apenas refletem, mas produzem o sujeito.
A subjetividade, nesse cenário, deixa de ser introspectiva e passa a ser calculada, previsível, vendável.
A tecnopolítica do afeto e do desejo
Não apenas pensamos com máquinas — sentimos com elas. As tecnologias não são neutras: elas operam sobre nossas emoções, relações, autoestima, libido. Elas nos dizem quem devemos ser, como devemos parecer, com quem devemos nos relacionar.
A subjetividade tecnopolítica é, assim, uma produção afetiva e econômica ao mesmo tempo: somos ao mesmo tempo usuários, produtos e trabalhadores de plataformas que colonizam nossos afetos e hábitos.
Resistência e reinvenção do eu
Diante dessa condição, a questão não é simplesmente rejeitar a tecnologia — mas compreender como ela age na produção de subjetividades e criar estratégias de resistência e reinvenção.
Isso pode passar por:
- Desprogramações estéticas e afetivas (como fazem artistas e ativistas queer);
- Práticas de cuidado coletivo e desobediência ao culto da performance;
- Hackeamento de plataformas e de regimes de visibilidade;
- Criação de corpos e subjetividades não-normativas, impuras, inclassificáveis.
Conclusão: quem é você quando um algoritmo te define?
A subjetividade tecnopolítica nos força a repensar a pergunta “quem sou eu?”. Porque o “eu” do presente não é autêntico nem ilusório — ele é tecnicamente fabricado, política e economicamente atravessado, bioquimicamente modulado.
Saber disso é o primeiro passo para tomar consciência dos dispositivos que nos constituem — e, talvez, inventar modos de existência que escapem da normatização total.
A subjetividade não é dada. É uma arena. E nela, cada gesto, cada prática, cada uso do corpo ou da linguagem pode ser uma forma de reexistência.