Nem todas as vidas são tratadas como vidas. Nem todas as mortes provocam luto, revolta ou comoção. Algumas mortes mobilizam homenagens globais. Outras passam despercebidas, ignoradas, naturalizadas. Essa desigualdade no valor atribuído à vida e à morte está no centro da reflexão da filósofa norte-americana Judith Butler sobre o conceito de vidas precárias.
A pergunta que Butler lança é tão simples quanto devastadora:
quem merece ser lamentado?
Neste artigo, exploramos o que está em jogo nesse questionamento — e por que ele diz tanto sobre a política contemporânea, a mídia, o racismo, a guerra e os afetos.
O que é uma vida precária?
Para Judith Butler, toda vida é, por definição, precária. Somos corpos vulneráveis, dependentes de outros para sobreviver. Vivemos expostos a ferimentos, doenças, perdas, violências. A precariedade é uma condição humana fundamental.
Mas nem toda precariedade é tratada da mesma forma. O que Butler propõe é pensar a precariedade como um conceito político: há vidas que são protegidas, valorizadas, reconhecidas — e outras que são descartadas, invisibilizadas ou expostas à morte sem escândalo.
Ela chama atenção para o fato de que o valor de uma vida não é simplesmente dado, mas é produzido por normas sociais, culturais e políticas. Em outras palavras: a vida é politicamente enquadrada.
Quem decide o que é uma vida?
Para Butler, o reconhecimento de uma vida como tal depende dos quadros de inteligibilidade — os filtros culturais e midiáticos pelos quais decidimos o que merece atenção, empatia, luto.
Esses quadros determinam, por exemplo:
- Qual morte será noticiada com destaque, e qual será omitida.
- Quem será representado como vítima inocente, e quem será retratado como ameaça.
- Quais mortes provocarão comoção pública, e quais serão justificadas ou ignoradas.
Esse processo cria uma hierarquia de vidas. Algumas são vistas como plenamente humanas, outras como vidas “menos vivas”, menos dignas de luto, menos valiosas.
Exemplos concretos
A análise de Butler ganha força diante de contextos como:
- Guerra contra o terrorismo: após o 11 de Setembro, vidas norte-americanas foram massivamente lamentadas, enquanto as mortes de civis afegãos, iraquianos ou palestinos eram justificadas como “danos colaterais”.
- Crise migratória: mortes de pessoas migrantes no Mediterrâneo ou nas fronteiras dos EUA são tratadas como tragédias anônimas, muitas vezes culpabilizando as próprias vítimas.
- Violência policial nas periferias: assassinatos de jovens negros em favelas e comunidades pobres raramente geram comoção pública, sendo muitas vezes enquadrados como “confronto” ou “guerra ao crime”.
- Pessoas trans, indígenas ou em situação de rua: seus corpos seguem sendo os mais vulneráveis à violência e os menos reconhecidos na esfera pública.
Esses exemplos revelam como o valor de uma vida é profundamente condicionado por raça, classe, gênero, nacionalidade e visibilidade.
Luto e política
Butler argumenta que o luto é um ato político. Lamentar uma vida é reconhecer que ela foi valiosa, que sua perda importa, que ela deixa um vazio.
Negar o luto a alguém — ou a um grupo — é negar sua existência plena, é manter sua exclusão simbólica e social.
Por isso, disputar o direito ao luto é também disputar o direito à existência, à memória e à dignidade.
Movimentos sociais como Black Lives Matter ou Vidas Trans Importam são expressões dessa disputa: eles denunciam que certas mortes são tratadas como banais — e exigem que sejam reconhecidas como perdas que devem ser lamentadas.
Ética da vulnerabilidade
Para Butler, reconhecer a precariedade como condição comum é o ponto de partida para uma ética da interdependência. Ou seja: só é possível criar uma política mais justa se reconhecermos que todas as vidas são vulneráveis e merecem cuidado, proteção e luto.
Essa ética exige:
- Ampliar os quadros de reconhecimento.
- Ouvir as vozes silenciadas.
- Desnaturalizar a violência estrutural.
- Assumir a interdependência como princípio político.
Desse ponto de vista, o luto não é apenas um gesto privado ou sentimental. É uma prática ética e coletiva de reconhecimento — e uma chave para a transformação social.
Conclusão: tornar visível o sofrimento invisível
“Vidas precárias” não é apenas uma descrição do mundo. É uma crítica — e um apelo.
É um chamado a reparar nas vidas que são feridas e nas mortes que não são lamentadas.
É uma denúncia da seletividade do luto e do reconhecimento.
É uma proposta para reconstruir os vínculos sociais com base na empatia, na justiça e no cuidado.
A pergunta que Judith Butler nos deixa continua ecoando:
O que torna uma vida digna de luto? E quem está fora desse círculo?
Responder a essa pergunta não é apenas uma tarefa teórica — é uma tarefa urgente, política e ética para o nosso tempo.