Como a sociedade pune? O que ela espera ao castigar? E o que as formas de punição dizem sobre o tipo de poder que exerce?
Essas são as perguntas centrais de Vigiar e Punir: nascimento da prisão (1975), uma das obras mais importantes de Michel Foucault. Muito mais do que um livro sobre o sistema penal, é uma investigação sobre como o poder moderno se transformou, passando da exibição da força bruta para a produção de corpos dóceis e úteis.
Neste artigo, exploramos os principais pontos do livro e por que ele continua sendo tão atual.
A punição antes: espetáculo, dor, soberania
Foucault inicia o livro com uma cena brutal: o suplício de um condenado à morte em 1757, punido com requintes de crueldade diante da população. Essa cena não é escolhida por acaso: ela mostra como a punição era um espetáculo — um ritual em que o soberano reafirmava seu poder sobre o corpo do criminoso.
Características da punição pré-moderna:
- Pública e exemplar;
- Baseada na dor física;
- Vingança do soberano contra quem transgrediu sua autoridade.
Era a forma de dizer: “quem desafia o rei, será destruído.”
A transição: do suplício ao controle
Entre os séculos XVIII e XIX, algo muda profundamente: as punições deixam de ser públicas e sangrentas. O condenado agora vai para a prisão, onde será reformado, corrigido, reintegrado.
Mas essa mudança não é simplesmente humanitária. Foucault mostra que a forma do poder muda: sai de cena o poder de matar, entra o poder de vigiar, normatizar e disciplinar.
A punição moderna: normalizar, vigiar, corrigir
Com a prisão moderna, o objetivo não é mais punir o crime em si, mas transformar o indivíduo. O foco passa a ser a alma, o comportamento, a repetição de condutas.
A punição moderna atua de forma invisível, constante, rotineira. E não só na prisão — mas também na escola, no quartel, no hospital. São espaços que compartilham técnicas disciplinares:
- Distribuição no espaço (salas, celas, fileiras);
- Controle do tempo (horários, calendários, rotinas);
- Exames e registros (boletins, relatórios, prontuários);
- Vigilância contínua (guardas, professores, câmeras, algoritmos).
O objetivo é formar sujeitos normais, previsíveis, adaptados.
A prisão como modelo e síntese
Para Foucault, a prisão não é um “erro” do sistema — ela é seu símbolo e ápice. Mesmo que critique sua eficácia, a sociedade insiste nela porque ela cumpre funções invisíveis:
- Classifica: separa o normal do anormal;
- Documenta: produz saberes sobre o criminoso (perfil, periculosidade);
- Reforça normas: quem está fora quer seguir as regras para não ir parar dentro.
A prisão é uma máquina de produzir sujeitos — uma fábrica de corpos obedientes, mas também um espelho da sociedade como um todo.
O Panóptico: ver sem ser visto
Foucault recorre ao conceito de panóptico, uma prisão ideal proposta por Jeremy Bentham, em que o vigia pode ver todos os presos sem ser visto. Isso gera um efeito psicológico poderoso: os presos se autocontrolam pela simples possibilidade de estarem sendo observados.
O panóptico é mais do que uma arquitetura: é um modelo de poder que se espalha por toda a sociedade — vigilância silenciosa, permanente, descentralizada.
Hoje, com câmeras, algoritmos, big data, redes sociais e reconhecimento facial, a metáfora do panóptico ganha novos contornos — e mostra como Foucault estava à frente do seu tempo.
O saber-poder: a punição produz conhecimento
Um dos conceitos mais inovadores de Foucault é o de saber-poder. Ao punir, a sociedade não apenas controla, mas produz saber: classifica os desvios, identifica padrões, cria perfis, inventa categorias.
Surge, assim, o “criminoso”, o “delinquente”, o “perigoso” — figuras que não existiam antes e que passam a ser tratadas como objetos de ciência, de política, de controle.
O sistema penal se torna um campo onde se cruzam:
- Direito,
- Medicina,
- Psicologia,
- Estatística.
Por que Vigiar e Punir ainda importa?
Em tempos de encarceramento em massa, militarização das periferias, câmeras em sala de aula, algoritmos que antecipam “comportamentos suspeitos”, Vigiar e Punir continua sendo uma obra essencial.
Foucault nos ensina que punir é mais do que aplicar justiça — é uma forma de organizar a sociedade.
Entender isso é o primeiro passo para resistir, pensar alternativas e imaginar uma justiça que não reproduza a exclusão, o racismo e o controle social disfarçados de neutralidade.
Conclusão: quem vigia os que vigiam?
Foucault não oferece respostas fáceis — mas nos convida a perguntar:
- Quem define o que é crime?
- Quem é punido — e quem escapa?
- A quem serve o sistema penal?
- O que podemos fazer para imaginar outras formas de justiça?
Pensar a punição é pensar o poder. E questionar o poder é o começo da liberdade.