Racismo como Tecnologia de Poder: Quem Pode Viver, Quem Deve Morrer

Em muitas sociedades, o racismo é tratado como um problema individual — um preconceito, um desvio de comportamento, algo que “ainda precisa ser superado”. Mas para pensadores como Michel Foucault, Frantz Fanon e especialmente Achille Mbembe, o racismo é muito mais do que uma ideologia ou um ódio pessoal: ele é uma tecnologia de poder.

Ou seja, o racismo não é um acidente do sistema — é uma engrenagem essencial do modo como o poder moderno organiza a vida, decide quais corpos devem ser protegidos e quais podem ser descartados.

Neste artigo, exploramos como o racismo funciona como uma tecnologia política que estrutura o mundo moderno — da colonização às prisões, das favelas às fronteiras internacionais.

O que é uma tecnologia de poder? (Foucault)

Michel Foucault chamou de “tecnologias de poder” os conjuntos de práticas, saberes e dispositivos que governam os corpos e as populações. Essas tecnologias moldam o que somos, como agimos, o que é permitido ou proibido, visível ou invisível.

No caso do racismo, ele não é só uma crença ou discurso: é um modo de gerir a vida e a morte, uma ferramenta de governo, especialmente nas sociedades modernas e coloniais.

Racismo como condição do biopoder

No seu curso “Sociedade Deve Ser Defendida” (1976), Foucault diz que o racismo é o elemento indispensável para que o biopoder funcione plenamente. Por quê?

Porque se o biopoder é o poder de “fazer viver e deixar morrer”, o racismo cria uma separação entre:

  • Vidas que devem ser protegidas (as vidas normais, produtivas, reconhecidas);
  • Vidas que podem ser expostas à morte (as vidas desviantes, anormais, racializadas).

“O racismo permite a separação entre quem deve viver e quem pode morrer.”
(Michel Foucault)

Em outras palavras: o racismo é a justificativa para matar em nome da vida — seja matando diretamente, seja negando saúde, educação, dignidade, humanidade.

Mbembe e a necropolítica: matar para governar

Achille Mbembe aprofunda essa ideia em seu conceito de necropolítica. Para ele, nas sociedades pós-coloniais, o poder já não se limita a administrar a vida — ele organiza a morte.

“A forma suprema da soberania reside no poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer.”
(Mbembe, “Necropolítica”)

Nesse contexto, o racismo não é apenas um traço histórico do colonialismo: ele é a lógica que continua operando nas democracias liberais, nas fronteiras militarizadas, nas periferias urbanas, nos sistemas penais.

A população negra, indígena, migrante, pobre, é constantemente exposta à morte — direta ou indireta — por meio da violência do Estado, da negligência estrutural ou da precarização da vida.

Onde o racismo opera como tecnologia?

O racismo como tecnologia de poder não age apenas através de insultos ou discriminação explícita. Ele se infiltra em:

A polícia e o sistema penal

  • Quem é preso? Quem morre em “confrontos”?
  • Quem é revistado? Quem é considerado “suspeito”?
  • Qual corpo pode ser morto sem escândalo?

A saúde pública

  • Quem tem acesso ao cuidado?
  • Quem morre mais em pandemias, partos ou doenças negligenciadas?

A educação e o mercado de trabalho

  • Quais corpos são vistos como “competentes”?
  • Quem ocupa os espaços de prestígio e decisão?

O urbanismo e a militarização dos territórios

  • Onde o Estado chega com escolas, e onde chega com armas?
  • Quem vive em áreas cercadas e quem vive cercado?

A mídia e a cultura

  • Quem é retratado como ameaça? Quem é retratado como vítima?
  • Quem pode contar sua própria história?

O racismo estrutura modos de ver, de nomear, de legitimar a violência e a desigualdade — naturalizando a exclusão.

E o que fazer? Desracializar o mundo é descolonizar o poder

Reconhecer que o racismo é uma tecnologia de poder é fundamental para não cair na ilusão de que ele é apenas “erro individual” ou “questão de educação”. É preciso:

  • Enfrentar as estruturas institucionais que sustentam o racismo;
  • Descolonizar o conhecimento, o ensino, a justiça e a política;
  • Produzir novas formas de habitar o mundo, de se relacionar com o outro, de construir o comum.

Pensadores como Frantz Fanon, Angela Davis, Mbembe, bell hooks, Gloria Anzaldúa e muitos outros apontam caminhos onde a luta antirracista é também luta por vida digna, por subjetividades livres, por mundos habitáveis.

Conclusão: não se trata de conviver com a diferença, mas de desmontar a hierarquia

A pergunta central não é mais: “como vencer o racismo?”, mas sim:
Como desativar o racismo como engrenagem do poder?
Como criar formas de existência onde nenhuma vida seja sacrificável?

Pensar o racismo como tecnologia de poder é começar a ver que a luta antirracista não é uma questão de identidade, mas uma questão de justiça histórica, ética e política.

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