Em meio ao caos da cidade moderna, uma figura caminha sem pressa. Observa tudo, não pertence a lugar algum, e transforma o banal em imagem poética ou crítica social. Essa figura é o flâneur — o andarilho urbano que, longe de ser apenas um passante, é um observador atento do mundo moderno.
Popularizado por Walter Benjamin a partir dos poemas de Charles Baudelaire, o flâneur tornou-se um símbolo filosófico e cultural: um sujeito que revela as contradições da modernidade, que se perde nas multidões para melhor enxergá-las.
Conheça nossa palestra: “Walter Benjamin e os (des)caminhos de flâneur” por Ernani Chaves
Quem é o flâneur?
O termo flâneur vem do francês e significa algo como “vaguear”, “passear sem rumo”. No século XIX, com o surgimento das grandes cidades europeias — especialmente Paris —, surge uma nova experiência urbana: a multidão anônima, os bulevares, as vitrines, as passagens cobertas, a mercadoria exposta como espetáculo.
O flâneur é:
- Um espectador da cidade;
- Um andarilho sem destino fixo, que vagueia pelas ruas;
- Um sujeito que observa sem ser notado, fundido na massa mas jamais absorvido por ela.
De Baudelaire a Benjamin: o flâneur como crítica da modernidade
▸ Charles Baudelaire, poeta francês do século XIX, foi quem transformou o flâneur em figura literária. Em seus poemas e crônicas, o flâneur aparece como aquele que encontra beleza e melancolia na multidão, na noite, nos becos esquecidos.
▸ Walter Benjamin, por sua vez, transforma o flâneur em um conceito filosófico e político. No seu projeto inacabado “Passagens” (Das Passagen-Werk), Benjamin analisa a Paris do século XIX como laboratório da modernidade capitalista — e o flâneur como seu intérprete privilegiado.
Para Benjamin, o flâneur:
- Encara a cidade como um texto a ser decifrado;
- É o colecionador de impressões fugidias;
- É uma figura em crise, dividida entre o encantamento com a modernidade e sua alienação.
Flâneur e mercadoria: entre o olhar e o consumo
Benjamin observa que o flâneur caminha em meio ao nascimento da sociedade de consumo. Ele percorre passagens comerciais cobertas de vidro, com vitrines iluminadas e mercadorias organizadas como objetos de desejo. O flâneur está cercado por:
- Imagens publicitárias;
- Objetos fetichizados;
- Ritmos acelerados da cidade moderna.
No entanto, o flâneur resiste: ele olha, mas não compra; circula, mas não se integra. Ele está dentro da lógica da mercadoria, mas a observa com ironia, com crítica, com poesia.
O flâneur e a experiência do tempo
O flâneur se opõe à pressa da vida moderna. Ele retarda o passo, se perde de propósito. Seu tempo é outro — é o tempo do devaneio, da intuição, do olhar demorado.
Em tempos de relógios, fábricas e produtividade, o flâneur é um corpo desobediente. Ele nos lembra que a experiência — no sentido profundo, sensível, subjetivo — não cabe nos horários marcados nem nas metas de produção.
O flâneur hoje: ainda existe?
O flâneur clássico talvez tenha desaparecido junto com os bulevares do século XIX. Hoje, as cidades são policiadas, vigiadas, privatizadas. O “vagar” se torna suspeito; o “andar sem rumo” é privilégio raro. Mas alguns ecos do flâneur ainda sobrevivem:
- O fotógrafo de rua que captura o cotidiano urbano;
- O artista que transforma o banal em crítica visual;
- O escritor que observa os gestos anônimos da cidade;
- O viajante que prefere o desvio à rota turística.
E talvez, até mesmo, aquele que se perde propositalmente na internet, entre fluxos de imagens, textos e ruídos — o flâneur digital.
Conclusão: flanar é resistir
Em um mundo que exige pressa, produtividade e eficiência, o flâneur representa uma forma de resistência sensível: observar, caminhar, parar, se perder, olhar de novo. Ele nos convida a olhar a cidade — e a nós mesmos — com mais espanto, mais crítica, mais presença.
Para Walter Benjamin, o flâneur é, acima de tudo, testemunha do nascimento da modernidade — mas também um de seus primeiros críticos. Em seu olhar demorado, em seus passos desviados, está a semente da pergunta que nos interessa até hoje:
Como viver — e sentir — em um mundo acelerado demais para perceber?